A vida pelo ângulo do morango

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Café

Eram 3:03 da madrugada e, enquanto os vizinhos dormiam e cessavam suas discussões, ele estava mais acordado do que nunca.  Acontece que àquela hora, em que reinava o silêncio do mundo, era o momento que as pessoas se esqueciam em sonhos e ele podia lembrar-se de si. 
O  jovem se tornava mais vivo a cada minuto daquela madruga, ele podia sentir desde seus passos que martelavam contra o chão de madeira até o bule de leite que agonizava ao forno com um grito que preenchia o apartamento.  Então, como em um ritual de autoconhecimento, despejava o leite no café instantâneo, sentava na ponta da mesa da sua estreita cozinha e tomava, lentamente e com todo um cuidado para não se queimar, cada gole aquecido. E naquela xícara ele começara a sentir o cheiro dos tempos em que ele era apenas um menino.
Era engraçado e até meio estranho relacionar uma coisa dessas. Talvez fosse o horário ou, quem sabe, a bebida mais cedo que o tivesse feito ver tanto em uma mísera xícara, mas o fato é que ele não podia se desfazer de uma velha cena que se repetira por várias antigas manhãs. 
Com a altura das suas atuais pernas, o pequeno traquina engatinhava abaixo da antiga mesa de madeira da casa de sua mãe, ao mesmo tempo em que se chocava com as pernas de seu pai que dançavam, entre risos, por baixo da mesa.  Sua mãe, que olhava de soslaio, despejava o estoque do mesmo café na garrafa térmica, suspirando “Esse menino ainda vai levar um belo de um galo!”. O pai, ainda com meio riso da brincadeira, retrucou “ Sim, um belo galo seria um bom preço pra uma bela saudade!”. E como premonição, logo após a fala veio o galo e agora, 15 anos depois, a saudade.